Zigue-zague de Elétrons

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O setor elétrico está apreensivo, tenso. A tensão faz parte da rotina desde 2007. Sem alívio. O Operador Nacional do Sistema (ONS), no seu novo ciclo de planejamento de operação, denominado PEN 2019-2023, sinalizou que a severa escassez de água, desde 2012, pode definir um novo período hidrológico crítico, mais rigoroso que o anterior, de 1948 a 1955.

Para os menos atentos, o último período de chuvas, que este ano encerrou em maio, foi dos mais úmidos e longos. Ainda assim, os reservatórios mal chegaram a 47%. Como até novembro esse índice diminui para 20% ou 30%, será necessário muito mais chuva para que os reservatórios ultrapassem os 60% no fim de abril de 2020 – isto apesar do tímido crescimento do consumo.

Assim, não é desprezível a probabilidade de que sejam necessários mais 10 ou 15 anos para que os reservatórios alcancem novamente o nível pré-crise (87,8% em 2011, o maior desde o racionamento de 2001). A imprudência foi tamanha que, muito rapidamente, saímos do maior nível de armazenamento do histórico para 16% em 2015, mesmo com todo parque térmico e eólico à disposição. O significado disso é importante: a oferta de energia das hidrelétricas precisaria ser recalculada, obrigação que o governo cumpre de forma errada ou empurra com a barriga desde 2004.

A centralização é a explicação para o irracional uso dos recursos energéticos. A utilização dos reservatórios decorre de decisões orientadas por algoritmos matemáticos vulneráveis a excessivas intervenções, que possuem como premissas a manjada segurança energética e a desgastada aversão a riscos, também lidos como energia a qualquer custo. Foi a segurança energética, para evitar um racionamento em 2014, ano eleitoral, que esvaziou os reservatórios, deixando-os quase irrecuperáveis.

Se cada usina fosse responsável pelo uso dos seus respectivos reservatórios, não tenham dúvida, o cenário seria outro. Em 2013, diante das palpáveis perspectivas de aumento da escassez, as próprias hidrelétricas, para se protegerem da elevação dos custos, adotariam estratégias defensivas, para preservar seus reservatórios. Nestas circunstâncias, comprariam energia de outras fontes, construiriam ou incentivariam a construção de termelétricas, como acontece em qualquer parte do mundo.

Basta, para isso, que a ordem de acionamento do parque gerador seja definida pelas próprias usinas, que, em leilões no dia anterior, diriam o quanto têm e quanto valem suas disponibilidades no dia seguinte – day ahead. Tudo ficaria mais preciso e os riscos e custo seriam melhor alocados.

No dia 25 de julho, a Câmara de Comercialização organizou concorrido evento para discutir a formação do preço. Ótimas cabeças, sem grande ênfase ou convicção, mostraram temer eventuais aumentos de preços com a oferta constituída em leilões diários. Mas são insignificantes essas chances, dado que mais de 90% da energia são comercializados por contratos de longo prazo, e não no mercado spot. Atenção especial se deve ter com o poder de mercado. Há uma concentração no segmento de termelétricas, que teriam relevante participação no atendimento da demanda residual.

Mas vejam que interessante: também em 25 de julho, o mesmo ONS, na definição do programa mensal de operação para agosto, destacou, de forma precisa, que, para todo ano de 2019, a energia contratada ultrapassa em mais de 14 mil MW médios a carga. É uma sobra cavalar, que daria para suprir a região Sul por um ano, e ainda teria para 30% do Nordeste. É sobra equivalente ao consumo de meia Argentina. E deve ir até 2028, pois em 2023 o excedente ainda será de 9 mil MW médios. Se fosse jaca, uma fruta difícil de carregar e de guardar, o vendedor simplesmente reduziria seus preços para desovar o estoque ou eliminar o excedente.

Mas não é bem assim. No dia 26 de julho, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) acionou a bandeira vermelha para agosto, que impõe um aumento imediato e não desprezível nas tarifas. A bandeira vermelha significa que o atendimento do total da carga requer o uso de usinas termelétricas, muito mais caras, dado que o produto, energia elétrica, ficou escasso.

Em outras palavras, no setor elétrico escassez e abundância se confundem, andam lado a lado. A energia é escassa, mas os consumidores foram obrigados a contratar muito mais do que precisam. Pagam pela falta e pela sobra, e pagam muito. Um autêntico, e infeliz, “zigue-zague de elétrons”.

Em artigo (Colapso e explosão tarifária) de 3 de agosto de 2018, neste Valor, alertei para a baixa produtividade do setor elétrico, pois só eram utilizados 40% da capacidade instalada de geração. A situação real é bem pior. Além do que afirmei há um ano, a energia contratada nos festivos leilões é 20% maior do que a necessária, e essa sobra vai aumentar. Como a economia patina e o consumo de energia anda de lado, o excedente de contratos se torna uma perturbação indigesta, como os bagos da jaca.

Por que isso acontece? Uma explicação estaria na duradoura recessão econômica, que, dada a balbúrdia e o ambiente de guerrilha, seguirá por mais um tempo. Mas o principal determinante são as compras centralizadas, em que o governo adquire, pelo preço que ele define e de projetos que ele prioriza, a energia que as distribuidoras vendem para os consumidores. Como não tem qualquer ônus pelos resultados, o governo compra o que não precisa e para quem não pediu.

O estranho é que o Secretário de Planejamento Energético do Ministério de Minas e Energia idealizou que o leilão A6, previsto para outubro de 2019, será realizado mesmo que não tenha demanda e com metodologia, nota-se, que aumentará essa sobra. E há também Angra 3, que, caríssima, tem enormes chances de extrapolar essas sobras.

Nem os geradores queriam tanto. Sem terem culpa, vendem o que os consumidores não pediram e não precisam, e recebem por isto mesmo que não entreguem, como o caso recente descrito por Camila Maia no Valor de 26 de julho. A distribuidora de Roraima é cobrada por não pagar pela energia contratada do pool de geradores do sistema interligado. Só que ela jamais recebeu a energia, e não a recebeu porque continua isolada. E permanece isolada porque o Estado, via seus múltiplos tentáculos, ainda não autorizou a construção da linha de transmissão, um atraso de 3 anos.

O zigue-zague dos elétrons, pelo visto, nocauteou os neurônios governamentais, deixando-os alucinados, o que preocupa. Os desafios são inéditos, e não me parece que o desacreditado algoritmo de otimização hoje utilizado tenha alguma serventia em um cenário inaudito, em que sobra é sinônimo de escassez. Tomara que as boas ideias (de livre concorrência) do novo mercado do gás ajudem a organizar o setor elétrico.

Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção, ex-diretor da Aneel e vice-presidente da Electra Energy

Fonte: Valor

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